terça-feira, maio 15, 2007

Brincar de pensar



A arte de pensar sem riscos.

Não fossem os caminhos da emoção a que leva o pensamento, pensar já teria sido catalogado como um dos modos de se divertir.

Não se convidam amigos para o jogo por causa da cerimônia que se tem em pensar.

O melhor modo é convidar apenas para uma visita e, como quem não quer nada, pensa-se junto, no disfarçado das palavras.
Isso, enquanto jogo leve.

Pois para pensar fundo – que é o grau máximo do hobby – é preciso estar sozinho.

Porque entregar-se a pensar é uma grande emoção, e só se tem coragem de pensar na frente de outrem quando a confiança é grande a ponto de não haver constrangimento em usar, se necessário, a palavra outrem.

Além do mais exige-se muito de quem nos assiste pensar:

que tenha um coração grande,amor, carinho, e a experiência de também se ter dado ao pensar. Exige-se tanto de quem houve as palavras e os silêncios – como se exigiria para sentir.

Não, não é verdade. Para sentir exige-se mais.
Bom, mas, quanto a pensar como divertimento, a ausência de riscos o põe ao alcance de todos. Algum risco se tem, é claro.

Brinca-se e pode-se sair de coração pesado.

Mas de um modo geral, uma vez tomados os cuidados intuitivos, não tem perigo.

Como hobby, apresenta a vantagem de ser por excelência transportável.

Embora no seio do lar seja ainda melhor, segundo eu.

Em certas horas da tarde, por exemplo, em que a casa cheia de luz mais parece esvaziada pela luz, enquanto a cidade inteira estremece trabalhando e só nós trabalhamos em casa mas ninguém sabe – nessas horas em que a dignidade se refaria se tivéssemos uma oficina de consertos ou uma sala de costuras – nessas horas: pensa-se.

Assim: começa-se do ponto exato em que se estiver, mesmo que não seja de tarde; só de noite é que não aconselho.
Uma vez, por exemplo – no tempo em que mandávamos roupa para lavar fora – eu estava fazendo o rol.

Talvez por hábito de dar título ou por súbita vontade de ter caderno limpo como em escola, escrevi: rol de... e foi nesse instante que a vontade de não ser séria chegou.

Este é o primeiro sinal do animus brincandi, em matéria de pensar – como – hobby.

E escrevi esperta: rol de sentimentos. O que eu queria dizer com isto tive que deixar pra ver depois – outro sinal de se estar no caminho certo é o de não ficar aflita por não entender;

a atitude deve ser: não se perde por esperar, não se perde por não entender.
Então comecei uma listinha de sentimentos dos quase não sei o nome.

Se recebo um presente dado com carinho por pessoa de quem não gosto – como se chama o que sinto?

A saudade que se tem de pessoa de quem agente não gosta mais,essa mágoa e esse rancor – como se chama?

Estar ocupada – e de repente parar por ter sido tomada por uma súbita desocupação desanuviadora e beata, como se uma luz de milagre tivesse entrado na sala: como se chama o que se sentiu?
Mas devo avisar.

Às vezes começa-se a brincar de pensar, e eis que inesperadamente o brinquedo é que começa a brincar conosco.

Não é bom.

É apenas infrutífero.
(Clarice Lispector)

Nenhum comentário: